Vladimir Kush

Vladimir KUSH, Ripples on the Ocean, (Ondulações no Oceano)

Rumi

A vela do navio do ser humano é a fé.
Quando há uma vela, o vento pode levá-lo
A um lugar após outro de poder e maravilha.
Sem vela, todas as palavras são ventos.

Jalāl-ad-Dīn Muhammad RUMI




segunda-feira, 9 de março de 2009

Num ápice e de todo o coração!

Era uma vez uma rapariga muito folgazã que não gostava nada de fiar. Por mais que a mãe se zangasse, não havia maneira de a obrigar a fazer aquele trabalho. Até que um dia, a mulher perdeu de tal forma a paciência, que lhe encheu a cara de bofetadas. A moça pôs-se a chorar, a gritar... Calhou passar por ali a Rainha que, ao ouvir as lamentações da rapariga, mandou parar a carruagem, entrou na casa e perguntou à mulher por que razão batia na filha, a ponto de os seus gritos se ouvirem em toda a rua. Envergonhada de ter que apregoar assim a preguiça da filha, a mulher resolveu responder à Rainha:

-Não consigo tirá-la de ao pé da roca. Só se sente bem a fiar; porém sou pobre e não posso comprar tanto linho.

-Não há nada de que eu mais goste do que ouvir o ruído da roca. Deixa vir a tua filha comigo para o palácio. Tenho linho em abundância e ela poderá fiar todo o tempo que quiser.

A mãe, toda contente, deu o seu consentimento, e a Rainha levou consigo a rapariga. Chegadas ao palácio, conduziu-a a três aposentos do primeiro andar que estavam cheios até ao tecto de magnífico linho.

-Vais fiar-me todo este linho e, quando o tiveres fiado, dar-te-ei por esposo o meu filho mais velho. Não importa que sejas pobre; uma rapariga trabalhadora leva consigo um bom dote.

A moça sentiu, dentro de si, uma grande aflição, pois não havia quem fosse capaz de fiar todo aquele linho, nem que vivesse trezentos anos e não largasse a roca de manhã até à noite.

Quando ficou sozinha, começou a chorar, e assim esteve três dias sem mexer sequer um dedo.

No fim do terceiro dia, apareceu a Rainha e estranhou não ver nada feito ainda; porém, a rapariga desculpou-se dizendo que a grande saudade que sentia, por estar longe da mãe, não a tinha deixado trabalhar.

Deu-se a Rainha por satisfeita com a desculpa, mas disse-lhe:

-Amanhã tens de começar o trabalho.

Uma vez só, a rapariga quedou-se sem saber o que fazer nem como sair de tais apuros. Em meio da sua perturbação, chegou à janela e viu aproximarem-se três mulheres: a primeira tinha um pé muito grande e chato; a segunda o lábio inferior de um tamanho descomunal, tão grande, que lhe caía sobre o peito; e a terceira um dedo polegar avultadíssimo. As três detiveram-se diante da janela e, levantando os olhos, perguntaram à moça o que é que a afligia. Contou-lhes ela as suas penas e as três mulheres ofereceram-lhe a sua ajuda.

-Se te comprometeres a convidar-nos para a boda, sem te envergonhares de nós, a tratar-nos por primas e a sentar-nos à tua mesa, fiaremos por ti todo este linho, num ápice.

-Prometo de todo o coração - respondeu a moça. - Entrem e podem, desde já, começar o trabalho.

Mandou então entrar as três estranhas mulheres e arranjou no primeiro compartimento o espaço suficiente para elas trabalharem. Imediatamente puseram mãos à obra. A primeira puxava o fio e fazia girar a roda com o pé; a segunda humedecia o fio, a terceira torcia-o, achatando-o de encontro à mesa com o polegar, e, de cada vez que fazia isto, caía no chão um monte de fios muito finos. Sempre que a moça pressentia a Rainha, escondia as fiandeiras e mostrava o linho fiado. A Rainha admirava-se e tecia grandes elogios à rapariga. Acabado o linho do primeiro aposento, passaram para o segundo, deste para o terceiro, e não tardou que findasse todo o labor. Despediram-se então as três mulheres, recomendando à rapariga:

-Agora não te esqueças da tua promessa.

Logo que a donzela mostrou à Rainha os quartos vazios e o linho todo fiado, fixou-se o dia da boda. O noivo estava encantado de ir ter uma esposa tão hábil e trabalhadeira e não se cansava de a louvar.

-Tenho três primas - disse um dia a moça -, devo-lhes alguns favores e não quero esquecer-me delas na hora da minha maior felicidade. Permiti, pois, que as convide e as sente à nossa mesa.

-E porque não as havíamos de convidar? - perguntaram a um tempo a Rainha e o filho.

Assim, no dia do casamento, lá se apresentaram as três mulheres, muito bem postas. A noiva veio logo ao seu encontro, dizendo-lhes:

-Bem-vindas sejam, minhas queridas primas!

-Apre! - exclamou o noivo. - As tuas parentes são na verdade muito feias!

E, dirigindo-se à do pé chato, perguntou-lhe:

-Porque tendes o pé tão grande?

-De fazer girar o torno.

Passou então a interrogar a segunda:

-Porque vos descai tanto o lábio?

-De tanto lamber o fio - replicou a mulher -, de tanto lamber o fio...

E à terceira:

-Ai! como tendes o polegar tão achatado!

-Foi de tanto torcer o fio - replicou ela -, foi de tanto torcer o fio...

Assustado o princípe disse à Rainha:

-Nunca mais na vida a minha linda esposa tocará numa roca.

E, com isto, terminou para a pequena o pesadelo de fiar.

Outros contos de Grimm, Tradução Livre de Salomé de Almeida, Colecção Azul, Casa do Livro Editora, Barcelos, 1964

1 comentário:

almariada disse...

"Tinha andado alguns passos quando ouvi o surdo canto de uma roda de fiar, elevando-se agora para logo se apagar. Então senti verdadeiramente vontade de morrer, pois este é o som mais triste de todos quanto conheço."

Mark Twain, "As Aventuras de Huckleberry Finn", p. 288, Inquérito, Lisboa